sábado, 6 de setembro de 2014

Elena Romanova

Conversa à toa sobre o começo, o meio e o fim do amor

É certo que o amor começa quase sempre pelo mesmo mecanismo perfeito, preciso, inexplicável que organiza o reencontro inesperado de dois velhos conhecidos numa cidade com seis milhões de habitantes. Do nada. Nasce com a impertinência de uma espinha no rosto da debutante, da noiva ansiosa, da madrinha solteira. No descabimento de um espirro durante o orgasmo, o amor também dá o ar de sua graça. Surge como visita inesperada, resfriado, bolada na praia, multa de trânsito, mamangava, maria-fedida, vagalume, conjuntivite, cabelo branco em adolescente, flor no asfalto, passarinho em escritório.
Sem aviso, o amor rompe a membrana tênue que separa as coisas elevadas, impossíveis, da vida corriqueira e seus acontecimentos rasteiros. Dá as caras à toa, sem mais, como alguém que vai ao mercado, o despertador que não toca, a moça que acorda com raiva, o pobre que acerta na loteria, o tombo da patinadora. Porque o amor pertence à insuspeitada categoria das coisas imprevisíveis. O amor vive no terreno do imponderável. É ali que ele respira, ali ele espera, invisível, seu tempo fortuito e incalculável de vir a ser.
Ah… o amor que adora despertar no desencontro absoluto e na coincidência escandalosa dos números inacreditáveis, na história improvável da moça que passa sete anos sozinha e, dois meses depois de engatar um namoro assim-assim, encontra um moço que viveu os mesmos sete anos casado e há dois meses — os mesmos e inacreditáveis dois meses — encerrou mais uma entre tantas tentativas de amar e ser amado. É, o amor também principia em desarranjo e escárnio divino.
Então, uma vez iniciado, o amor vive sua maior peleja: o meio. Porque difícil não é o começo e nem o fim do amor. É o meio, o que existe entre um e outro lado da história, entre a capa e a contracapa, a frente e o verso. O morno que um dia foi água pelando e no outro será gelo e indiferença. A segunda, terça, quarta e quinta feiras de todo amor.
Quando chega ao meio é que o amor se põe à prova. E só sobrevive a esse terreno esburacado e enganoso o amor dos amantes operários. O amor trabalhador. Porque é de subidas dolorosas, descidas traiçoeiras e retas sonolentas que se compõe esse meio-caminho.
Quem aprende a ficar e se manter de pé, a cair e levantar nesse território impreciso vive o amor em sua face mais primorosa. O amor parceiro de quem se sabe disposto a caminhar rumo ao inferno para estar ao lado do outro, ou na frente, ou atrás. Porque só quem sobrevive às trevas há de entrar no paraíso.
No meio do amor, é preciso perder o medo de se arrebentar inteiro no campo minado do dia a dia. Ali, os casais caminham com cuidado para não pisar em nenhuma mina, ora sabendo, ora não, que se um o fizer os dois serão atingidos na explosão, tão perto estão um do outro.
A quem supera essa fase é reservado um regalo sublime, bônus do exercício maravilhoso de amar: as lembranças. Vagas e adocicadas lembranças de longas conversas tarde da noite, ouvindo a cidade dormir lá fora. As memórias de viagens e festas, sábados de cinema, domingos de churrasco, segundas a sextas de trabalho, planos e sonhos. As reminiscências, tão sublimes quanto os instantes que as originaram. Afinal, seja qual for o tamanho do meio, um dia o amor chega ao fim.
Nesse dia, a decência dos amantes é medida pelo tamanho de seu desprendimento e de sua capacidade de engolir o pranto e dizer “adeus, seja feliz”. Porque só merece as dores e as delícias do amor aquele que um dia saiba deixar o outro ir em frente. E que aprenda a estar só novamente e a guardar a dor consigo até a dor passar, como as antigas personagens de desenho animado que engolem bananas de dinamite acesas.
No amor, que também ama a lógica, depois do começo e do meio vem o fim. Tempo em que ele se arrasta entre migalhas, restos e sobras. Como o guaraná que perde o gás, a cerveja que esquenta, a goiaba que passa do tempo e deixa a casa inteira com cheiro de quintal, é certo que o amor também acaba como começou. Do nada. Em nada, como uma estranha sombra pálida e triste, sinal agudo de que seu tempo já foi e de que é hora de seguir em frente para, tomara Deus seja logo, começar tudo de novo e de novo outra vez.
Ilustração: Elena Romanova